na catraca

2.01.2008

Praça Clóvis

Continuando: Cinema e Histórias em quadrinhos

Ou: Segunda nota para uma poética do roubo

Sempre me interessou muito mais especular sobre o que as Histórias em quadrinhos e o Cinema têm de específico do que o que elas tem em comum. Por quê? Bem, explico-me: já disse que não creio na arte como discurso da especificidade, não obstante, creio que o cinema e a hq são artes irmãs, por conta de características específicas que elas dividem. Ora, que maneira melhor de desconstruir o formalismo especifísta que apontando o que essas linguagens têm de particular, e o que elas podem roubar uma da outra? Digo isso pensando evidentemente numa expansão da linguagem pra além de seus limites formais. Pensando o roubo como prática poética.

Retomando a coincidência de que quadrinhos e cinema são obras de arte, em essência, reprodutíveis, e por isso, de massa, nos cabe perguntar como se dá a relação com a “massa” em cada um.

Me parece que nesse ponto, salvo engano, a questão se coloca em termos de oposição: o cinema, é destinado a apreensão coletiva, em espaços que abriguem muitas pessoas juntas diante de uma tela, enquanto que os quadrinhos, apesar de serem resultados de uma experiência coletiva – aliás, como toda obra humana –, se destinam a fruição individual; o leitor e o objeto. Ora isso me parece uma diferença fundamental, embora pouco evidenciada.

Do ponto de vista da construção da linguagem, creio, há uma diferença muito bem demarcada e é sobre ela que me aterei: o tempo. O tempo na obra e o tempo da obra.

O tempo na obra.

Nos quadrinhos, o tempo é uma construção abstrata. Não existe, do ponto de vista prático, divisão temporal – passado, presente e futuro – uma vez que, num mesmo plano, o autor pode articular todos os tempos possíveis, e, em termos radicais, a página de quadrinho contém o tempo em sua totalidade. Do primeiro ao último quadro o leitor tem, num passar de olhos, toda concatenação temporal lógica desconstruida; o que é o presente numa página de quadrinhos? O primeiro quadro? Seu quadro imediatamente anterior ou o último quadro? Pode-se dizer que o tempo nos quadrinhos é um tempo “não temporal”.

Por outro lado, no cinema o tempo é muito bem determinado. Ora, do ponto de vista da experiência, o cinema é a arte do tempo presente, do tempo real. Só existe o que está diante dos olhos, na tela. O que passou, pertence ao passado, o que não se apresentou é futuro, logo, desconhecido. Só o que está diante dos olhos é presente, e me parece que os grandes diretores lidam, de alguma forma com essa consciência de tempo em sua arte. Construindo, esculpindo, seu tempo. O tempo no cinema é o tempo dos acontecimentos, numa palavra: real.

O tempo da obra.

O tempo dos quadrinhos é o tempo determinado por cada leitor, digo, o tempo que cada leitor, de acordo com sua vontade ou atenção, dedica a leitura de uma dada história ou mesmo de uma cena. Assim sendo, o autor jamais conseguiria controlar o tempo de apreensão de seu trabalho. De fato ele até pode adotar estratégias que acelerem ou retardem a leitura, mas determinar o tempo, não.

Já o tempo do cinema é dado a priori, uma vez que os filmes possuem uma certa duração. Nesse sentido, a fruição do filme é controlada por seus autores que tomam emprestado do público um dado espaço de tempo para lhes contar uma história.

Se pensarmos que o cinema trabalha sobre a articulação seqüencial de planos, e que seus autores controlam a apreensão temporal de seu filme, podemos concluir que os autores determinam inclusive por quanto tempo cada plano será visto pelo público. Ora, determinar por quanto tempo cada cena será vista, me parece algo muito importante do ponto de vista da construção da narrativa e, sobretudo, da construção do sentido da história numa perspectiva mais ampla afinal, faz toda diferença, conceitualmente falando, se um assalto será visto rapidamente, ou se uma cena de amor irá demorar. Agora, me pego pensando num plano de um filme de Wong Kar Way, onde uma fumaça de cigarro toma a cena por alguns minutos, e no quanto aquilo tinha a ver com o sentido do filme...

Essa é uma característica estrutural que me interessa muito no cinema, principalmente por que ela pode ser usada – e creio que assim é, às vezes, vide Godard, Tarkovski, Fellini e Wong Kar Way – para construir a clareza da história, digo isso pensando em suas intenções. Me parece uma qualidade que precisa ser roubada e aplicada nos quadrinhos, embora eu, de verdade, não tenha a mínima idéia de como isso pode ser feito, uma vez que é impossível controlar o tempo de leitura de cada um.

A pergunta é: como garantir que o leitor permaneça olhando para aquela cena pelo tempo que é necessário para a construção do sentido da história.

Sinceramente, não sei.

Mas tenho pensado bastante em como praticar esse roubo.

Abraços

Alcimar Frazão

Um comentário:

André Bernardino disse...

Mandou bem, meu velho. Sua perspicácia aumenta conforme sua cabeleira... o que espero que não seja meu caso, uma vez que tenho cada vez menos fios de cabelo pra pentear.

Só tenho uma ressalva. Não acho que o cinema, a despeito de ser uma mídia de massa, tenha sua fruição vinculada ao coletivo, como vc sugeriu. Ao meu ver, a experiência é individual, independente de quantas pessoas estiverem presentes na sala. Digo ainda que, quanto menos pessoas, melhor.

Deveriam haver leis rígidas contra pessoas que tiram o vizinho do processo de imersão, chutando uma cadeira ou falando fora de hora. Não consegui entender ainda como o código civil protege gente assim de uma boa agressão.
Enfim... é isso.

Gde abraço e parabéns pelos desenhos, ótimos como de costume.