De cima do morro Dois Irmãos dá pra ver a praia toda, até a ponta do Arpoador.Dá pra ver até um pouco mais. Dá pra ver as favelas, a Rocinha, o Vidigal, o alto e o baixo Leblon, a lagoa, o Sheraton... Dá pra ver estalado, gritando em alto e bom som, o beijo da boca do luxo na boca do lixo. E o seu contrário.
Jeito bem esquisito de começar um texto sobre processo... mas é a única coisa que me ocorre porque é a única coisa verdadeira. De lá de cima dá ver bem longe. Coisas que nem estão ali.
Foi lá que comecei a desenhar a historia "cazuza por ele mesmo".
Antes disso:
roteiro quase fechado e feito uma coleta mínima de referências era preciso começar a por no papel as idéia belíssimas que o texto do Dalton e do Pedro deixavam no ar(noir?). Mas antes disso eu precisava conhecer o nosso foco, descobrir o Cazuza.
Cresci ouvindo o rock brasileiro dos anos oitenta. Meu irmão adorava o som e eu acabei pegando gosto também. Mas veja bem, não sou tão velho assim. Nasci em 82, no ano que o Barão Vermelho lançou seu disco de estréia. Nem se tivesse memória muito boa não lembraria disso. Mas acontece que aquele som sempre me foi muito familiar...
Acabei conhecendo a obra do Cazuza e do Barão anos depois, no fim dos noventa quando comecei a retomar as audições de música brasileira. Algumas coisas me tocavam bastante nos versos do Cazuza mas estava longe de ser um fã.
Com o roteiro definitivo na mão, uma pesquisa mais séria já feita, fotos, livro de canções e biografia, comecei a fazer os primeiros estudos de cor pro trampo. Foi duro. É difícil raciocinar a cor como parte constitutiva do sentido da história. Além disso era preciso achar uma solução gráfica que de alguma forma falasse sobre o Cazuza, sobre sua poesia, sua obra. Algo que não fosse apenas o fetiche do colorido, efeito. Num dos poemas do cantor topei com o azul e o amarelo. Suas cores preferidas, as cores do seu santo no candomblé. Segundo ele, um santo brincalhão.
Azul e amarelo. Título de uma das músicas do último disco do cantor. O disco testamento "Burguesia". As duas cores renderam algumas coisas interessantes. São duas primárias. De cara eu já tinha a possíbilidade de uma terceira, fosse ou não usá-la. Mas depois de alguns testes ainda não tinha nada definido.
Decidi ir pro Rio de Janeiro fotografar e desenhar os lugares onde a história acontece. Fui num busão que sai de São Paulo na madruga. Cheguei lá de manhã cedinho. Fui até a Lapa conhecer o Circo Voador onde o Cazuza praticamente começou a carreira. De lá, segui para o Leblon. Aí a história começou.
Andei um pouco pelas ruas do baixo Leblon onde o cantor frequentava a boemia. Circulei um pouco pela orla e parei prum café num mirante ali perto, de onde dava pra ver parte da praia. Meia duzia de rabiscos e nada de bom. Subi o morro, e é verdade: Na subida do morro é diferente.
De cima do Dois Irmãos algumas coisas fizeram mais sentido pra mim, na obra daquele cara que passou a vida toda ali nos dois mundos que o morro brinca de separar juntando. Hotéis chiques e barracos, botecos no beco e bares na orla, cartões de crédito e navalhas... A boca do luxo e a boca do lixo, como diz o cantor. Sei lá, no fim, a imagem lá de cima rendeu um esboço pruma boa página e eu acho que comecei a entender o Cazuza. Não só poeta, mas o cara sem pódio de chegada e seu espelho obra. Um poço de contradições dosadas e bem pesadas. Como a cidade. Virei fã.
De volta a rua, mais fotos e rabiscos. Segui na caminhada até a ponta do Arpoador. Passei o resto do dia nisso. Indo, vindo, conversando com os senhores dos quiosques, com alguns passantes. Cheguei no arpoador no fim da tarde, naquelas horas em que o sol, já cansado de castigar a única pessoa em quilometros vestindo calça jeans, deixa espaço pros raios mostrarem sua beleza na atmosfera.
Ali eu percebi que o azul e o amarelo eram as cores certas pra estabelecer o sentido da história. Eu só ia precisar de uma variação tonal (do azul ao violeta, do amarelo ao ocre avermelhado) que auxiliasse na marcação do tempo, posta no roteiro, e que hora mantivesse a oposição das cores originais, hora abrandasse. Paleta tonal definida, deu até pra curtir um belo por do sol, que fugia apressado pro Japão atrás do Dois Irmãos, enquanto o rádio tocava “Todo Amor que Houver Nessa Vida”, uma feliz coincidência. Alí, depois de caminhar/desenhar/fotografar algumas horas, depois de ouvir todos os discos do Cazuza e alguns do Barão, eu sabia que já tinha terminado todo o trabalho que eu mal tinha começado pela manhã. Os desenhos da história estavam prontos. Eu só precisava ir pra mesa e passar as próximas duas semanas com poucas horas de sono e muita tinta nas mãos. A parte fácil.
Da ponta do Arpoador dá pra ver a praia inteira até o morro Dois Irmãos.
Dá pra ver até um pouco mais.
Coisas que nem estão ali.
Não percam a exposição.
Abraços
alcimar frazão.
p.s.
as imagens acima merecem alguma explicação: a primeira é um teste de cor, um dos primeiros; a segunda é um quadro que acabamos não utlizando na história; as duas últimas são a ilha em que se transformou meu quarto no meio do turbilhão pré-exposição, de desenhar três páginas por dia pra dar tempo de pintar tudo. O olho atento vai perceber muitas coisas interesantes espalhadas por aí.
ab.
a.f.
na catraca
Um comentário:
Olá, em primeiro lugar parabéns! Seus desenhos sintetizam muito bem o artista. Achei seu blog enquanto fazia uma pesquisa de imagens sobre Cazuza, meu ídolo vale ressaltar, tava procurando imagens [fotos] em boa resolução pra um trabalho acadêmico que optei fazer sobre Cazuza. Enfim, queria mesmo parabenizar você pela sua iniciativa, e se for possivel gostaria de usar algumas de suas imagens como elemento inspiratório.
=)
Parabéns novamente!
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